A arte

A arquitectura do Ramo Grande

Até à implantação da base aérea, as desigualdades e as privações próprias de uma sociedade campesina ainda admitem a identificação de padrões médios de riqueza, decorrentes da fertilidade dos solos, que capricham na produção de pão, carne e vinho. Aliás, a vizinhança, a profusão e o manuseio das pedreiras de cantaria facultam inclusivamente a perpetuação da tradicional prosperidade agrária. Na verdade, por todo o Ramo Grande, individualizamos um género de arquitectura singular e magnificente, que atesta a abastança de muitas famílias. No entanto, ainda em meados do século XIX, mais exactamente por altura da terceira queda da Praia, em 1841, na freguesia das Lajes imperam as construções primitivas, que não resistem à violência do abalo. Na generalidade, são casas de um só piso, compostas por três divisões, concretamente a cozinha, o meio da casa e o quarto de cama. Além disso, possuem paredes exteriores de pedra, muitas das vezes à vista, divisórias internas de madeira e depois de tabique, chão terreiro, excepto no quarto de cama, geralmente de sobrado coberto de estuque, que serve de delimitação à falsa, e tectos de palha, a evidenciar a tardia generalização da telha. Porém, embora o prazo, o terramoto exerce paradoxalmente um efeito positivo, porque suscita o aparecimento de um parque habitacional renovado, de onde sobressai um conjunto de moradias com solidez e asseio, fruto das exigências técnicas do promotor da reconstrução, o administrador José Silvestre Ribeiro, e da capacidade económica dos lavradores mais abastados.

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Este núcleo patrimonial, que acresce e até se aperfeiçoa na sucessão do tempo, constitui actualmente a denominada arquitectura do Ramo Grande, cuja inequívoca individualização ainda demanda a análise criteriosa dos historiadores da arte. Contudo, na falta de melhor avaliação científica, vale sobretudo o testemunho, tão sentimental quanto clarividente, de Vitorino Nemésio, expresso no Corsário das Ilhas, curiosamente em reacção contra a difusão do inquilinato improvisado e fantasista, consequente da implantação da base aérea. Na óptica do poeta da Praia, as antigas casas do Ramo Grande representam socialmente uma garantia de resistência à frivolidade e à corrupção dos tempos modernos. Ademais, na perspectiva artística, valem enquanto expressão arquitectónica, até porque, como refere, “É difícil achar na Península Ibérica, e mesmo em França, um tipo de “habitat” rural tão nobremente urbano como o de certos pontos das ilhas dos Açores, e em especial a sub-região da ilha Terceira chamada o Ramo Grande, em cuja planície cerealífera hoje irradiam as pistas colossais do aeródromo das Lajes”. Entre as características arquitecturais básicas, releva o desenvolvimento por dois pisos, sendo o rés-do-chão ocupado por lojas, as fachadas de tardoz, as varandas de cantaria aparelhada, que anteparem a entrada e a “rua”, e as janelas de verga redonda e com vidraças de guilhotina. Todas do mesmo tamanho e rasgadas em posição simétrica relativamente à porta.

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No centro das Lajes, reconhecemos ainda hoje um corpo arquitectónico de grande expressão no quadro rural da Terceira, composto pela igreja, império, despensa, casa da junta e passal e pelos prédios mais antigos dos arruamentos principais, muitos deles enquadráveis na classificação de arquitectura do Ramo Grande.

As expressões “arquitectura do Ramo Grande” ou “casa do Ramo Grande” estão hoje amplamente difundidas e são correntemente utilizadas como se se referissem a uma arquitectura perfeitamente identificada pela área de implantação, pela cronologia, pela tipologia e pelas características formais e construtivas.

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Vitorino Nemésio, que deu um contributo fundamental para o reconhecimento e divulgação da existência de uma arquitectura de carácter forte e individualizado na zona nordeste da Terceira aponta alguns dos aspectos que ajudam a delimitá-la. Entre eles tratar-se de um “habitat rural”, de ser um habitat rural que irradia uma dignidade e uma qualidade construtiva peculiares – “um tipo de habitat rural tão nobremente urbano” – e de essas dignidades e qualidades corresponderem não só às “casas mais afazendadas” mas também às de “lavradores de meias posses”. Contudo, quando se tenta circunscrever e aprofundar o tema, torna-se difícil fazê-lo sem recorrer ao auxílio da prosa inspirada e acutilante, mas de cariz eminentemente literário, do notável escritor.

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Existirá, então, uma arquitectura própria da região terceirense do Ramo Grande e tão claramente distinta da restante arquitectura da ilha (para já não falar da restante arquitectura açoriana) que mereça um estudo aprofundado e autónomo?

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São as premissas desse hipotético estudo, apoiadas directamente na análise dos cerca de trinta exemplares inventariados no Concelho de Praia da Vitória, que se pretendem apresentar neste pequeno texto, sabendo que uma abordagem mais desenvolvida, verdadeiramente científica e com conclusões menos provisórias, só será possível depois de “uma investigação das alterações de propriedade” resultantes da extinção dos morgadios, de uma pesquisa sobre os mestres pedreiros que participaram na construção desta arquitectura e de um conhecimento também mais profundo da arquitectura doméstica das outras áreas da ilha.

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Num aspecto todos parecem estar de acordo. É que, a ter uma efectiva autonomia, a casa do Ramo Grande está confinada à fértil planície que lhe empresta o nome e cuja abundância cerealífera justificou uma arquitectura de expressão abastada. “Esta região (…) constitui porventura a faixa plana mais extensa e mais fértil de todo o arquipélago dos Açores.”

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A planície do Ramo Grande, localizada a nordeste da ilha Terceira, estende-se no sentido noroeste/sudeste (o mesmo que veio a tomar a pista de aviação), alinhada e parcialmente limitada pela Serra de Santiago e pelas faldas da Serra do Cume. Inclui, assim, parte das freguesias de Vila Nova e da Agualva, que a limitam a noroeste, parte das freguesias de Fonte do Bastardo e de Cabo da Praia que a limitam a sudeste, e, no centro, as freguesias das Fontinhas, de S. Brás e das Lajes, sendo esta última o verdadeiro coração do Ramo Grande.

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Esta extensa e pujante área agrícola constituiu o principal celeiro da ilha até que a construção da base militar com o aeroporto (iniciada durante a segunda guerra mundial) lhe veio amputar a fatia mais apetecível dos recursos do solo e dar início à transformação dos meios de subsistência da população local.

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Também parece não haver grande divergência quanto ao facto de a arquitectura do Ramo Grande ser exclusivamente representada por habitações rurais que se distinguem frequentemente pela dimensão e sempre por um peculiar brio construtivo.

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Compreende-se, assim, a equivalência entre as designações “arquitectura do Ramo Grande” e “casa do Ramo Grande” ou, até, a maior pertinência da segunda.

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A presença de grandes lajes de pedra bem aparelhada em balcões e chaminés, e de cantarias com um certo grau de erudição em socos, cunhais, cornijas e molduras de vãos, são algumas das características distintivas da casa do Ramo Grande. Complementam-na diversas construções de apoio à vida rural, como “caixas de água”, currais de porco ou abrigos para o carro de bois, que, sendo também edificadas com lajes de pedra aparelhada, inclusivamente nas coberturas, remetem mesmo para um novo-riquismo construtivo.
A utilização privilegiada e simultânea de grandes lajes e de cantaria fina na construção só foi possível devido à presença na zona de abundantes pedreiras de ignimbritos, “rochas vulcânicas originadas pela deposição de escoadas piroclásticas ricas em fragmentos pomíticos” que aliam a capacidade de resistência à possibilidade de serem bem trabalhadas. As melhores dessas pedreiras, que deram o nome à freguesia onde foram encontradas, jazem hoje sob a pista do aeroporto. No entanto, o modo como a pedra foi utilizada e a qualidade do seu aparelho pressupunham a existência de artífices com capacidade de execução e a encomenda de proprietários que a soubessem apreciar.

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Quer a tradição interpretativa que o que se entende por arquitectura do Ramo Grande corresponda às casas resultantes da reconstrução que se seguiu ao sismo de 1841. A intenção do impulsionador da reconstrução, José Silvestre Ribeiro, que recomendava “que tanto os edifícios que de todo fossem reedificados, como os que apenas demandassem concertos e reparos viessem a ficar muito mais sólidos, elegantes, cómodos e perfeitos do que o eram antes do fatal desastre”, corroborava essa pretensão.

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Mas a verdade é que, segundo os relatórios finais das “Comissões de socorros”, a reconstrução nas freguesias rurais estava praticamente terminada no final de 1842, enquanto a construção das casas representativas da arquitectura do Ramo Grande, em grande parte datadas, estende-se por um período que vai de 1866 ao início do século XX, com especial intensidade nos anos setenta e oitenta do século XIX. Assim, e na sequência da hipótese avançada por José Guilherme Reis Leite, é mais provável que esta arquitectura corresponda a um surto construtivo ligado ao desmembramento dos morgadios (extintos em 1864) e a uma tentativa de afirmação social de uma classe de agricultores abastados que vão adquirindo as propriedades desmembradas e nelas construindo ou ampliando habitações, essas sim mais sólidas, elegantes e cómodas que as dos pequenos proprietários ou simples trabalhadores rurais. A abundância de marcas de posse nas fachadas destas casas, associadas ou não à data de construção (ou de alteração), confirma a necessidade de certificação dos novos proprietários.

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Mas afinal, nas suas linhas arquitectónicas gerais, como são as casas do Ramo Grande? São habitações que aparentam um desenho regrado (os vãos têm quase sempre intervalos regulares), uma construção sólida e acabamentos cuidados em cantaria à vista e que, embora tendo sido construídas na segunda metade do século XIX ou já no princípio do século XX, recorrem a modelos formais elaborados no século XVIII e provavelmente utilizados sem interrupção, os mais evidentes dos quais são as molduras de vãos com verga curva ou as que constituem sucedâneos das molduras de verga recta pombalina. A qualidade aparente da construção é reforçada sistematicamente pelos cunhais com base e plinto salientes, por vezes com a cornija relevada no canto formando um capitel, e quase sempre por um soco, por mais simples que seja. Frequentemente é ainda enriquecida por um subcapitel invertido, por uma pilastra a meio da parede, por um soco alto, espesso e com remate moldurado ou que, devido ao desnível do terreno, se solta transformando-se numa faixa horizontal.

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A arquitectura do Ramo Grande tem sido vista, como é natural, a partir das maiores habitações de dois pisos que se encontram na área e que, pela sua dimensão, pela proeminência dos seus balcões, ou pelo pitoresco dos óculos e das cartelas datadas, chamam mais a atenção. No entanto, o que distingue estas casas não são as características tipológicas mas sim as características expressivas.

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De facto, o que se tem chamado casa do Ramo Grande não corresponde sequer a uma tipologia arquitectónica definida. Antes repete, ou desenvolve, tipos de habitação pré-existentes, ao mesmo tempo que vai adoptando novos tipos e fazendo uma aproximação a modelos mais urbanos. Assim, apesar da prevalência do tipo linear em L, esta casa aparece também com o tipo linear simples ou, até, segundo tipos quadrangulares com a cozinha encostada ao tardoz ou integrada no perímetro da habitação. E em quase todos os tipos nas variantes de um e dois pisos. Isto quer dizer que, na verdade, a casa do Ramo Grande se limita a dar continuidade à variedade tipológica pré-existente. Ou então, se admitirmos que a chamada casa popular só veio a adquirir no século XIX a aparência que lhe conhecemos, a casa do Ramo Grande, embora correspondendo a construções geralmente maiores e com melhores acabamentos, fixou os seus modelos em simultâneo com a casa rural popular. E todos eles sobrevivem ao período de maior intensidade construtiva produzindo “sequelas de Ramo Grande” ao longo da primeira metade do século XX.

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Qualquer das hipóteses anteriores pode ser corroborada por uma análise, por exemplo, das típicas chaminés terceirenses de perfil vertical triangular, conhecidas por “chaminés de mãos postas”. Estas chaminés estão disseminadas por toda a ilha e tanto aparecem associadas a grandes casas senhoriais como às casas rústicas mais rudimentares. Já existiam antes e continuaram a fazer-se depois da explosão edificante. Nas casas do Ramo Grande, no entanto, evidenciam-se por serem construídas com grandes lajes ou blocos de pedra bem talhada que acentuam o rigor da sua forma geométrica. No fundo, o mesmo tipo de lajes que chamam a atenção nas guardas e pavimentos dos balcões, ou na constituição das “caixas de água” e nas coberturas dos abrigos para carros de bois ou dos chiqueiros.

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O mesmo acontece com os restantes aspectos construtivo-formais que adaptam, aperfeiçoam e eventualmente purificam ou reelaboram elementos herdados, redistribuindo-os por diferentes tipos de habitação sem uma regra fixa ou uma unidade estilística, ficando nuns casos mais presos ao passado e noutros menos. E também continuam a ser glosados, mais ou menos fantasiosamente, até à construção da base aérea durante a II Guerra Mundial.

casa do ramo grande lajes       casa do ramo grande laves - fontinhas

Assim sendo, o que verdadeiramente individualiza a casa do Ramo Grande, além de uma relativa maior dimensão de alguns exemplares, é a característica cor e a qualidade do talhe dos ignimbritos usados na construção. Cor e talhe valorizados pelo sistemático contraste da pedra bem recortada contra as superfícies brancas da alvenaria rebocada e caiada. A qualidade das cantarias suscitou durante décadas, nesta zona, a conservação da pedra à vista, ao contrário do que acontece noutras áreas da ilha onde os motivos construtivo-formais surgem predominantemente coloridos. Suscitou também a reprodução, com variações, dos modelos, até que a construção da base aérea e a difusão do betão armado inviabilizassem a exploração das pedreiras.

  museu do carnaval vila das lajes casa do ramo grande       Casa Fátima

Estamos, portanto, perante um fenómeno que releva mais da expressão arquitectónica e da impressão que esta provoca, com toda a subjectividade que ambos os termos acarretam, que de dados objectivos susceptíveis de informar uma verdadeira pesquisa. E essa é a principal razão porque esse fenómeno foi (e provavelmente continuará a sê-lo) mais facilmente apreensível por uma visão literária, que demonstrável por uma visão científica.

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