O culto do Divino Espírito Santo

O culto do Espírito Santo possui uma origem europeia medieval, atingindo a Península Ibérica por influência do apostolado das ordens religiosas. Em Portugal, o alargamento da veneração ocorre no termo da Idade Média, muito por obra da rainha Santa Isabel e dos frades de S. Francisco. Assim, a expansão do rito dos Açores ocorre logo na época do povoamento, por força da prática metropolitana e da participação dos franciscanos. Na generalidade, a devoção assenta numa teoria da História que, após os reinados do Pai e do Filho, apregoa a aproximação do império do Espírito Santo, caracterizado pela fraternidade dos povos. Deste modo, a abundância, a partilha e a amizade constituem os principais ingredientes da festa, implicando um grande exercício de entreajuda, consentâneo com a tradição das comunidades rurais.

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Ao cabo de meio milénio, e após a decadência em terras do continente, as festividades do Espírito Santo substituem no arquipélago, ainda com o carácter principal traço de união entre as crenças e os costumes das suas gentes. Daí a celebração do Dia dos Açores na segunda-feira do Espírito Santo, por decisão da Assembleia Legislativa Regional datada de 1980. Os estudiosos buscam explicações sobre a fidelidade dos açorianos ao Espírito Santo. Neste particular, invocam a precaridade da vivência em ilhas e a maior possibilidade de subtracção ao controlo da Igreja.

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Com efeito, ao longo dos séculos, a hostilidade do meio e a angústia do isolamento geram um sentimento de insegurança, que demanda uma prática de grande, cooperação, indispensável à garantia da sobrevivência entre uma terra madrasta e um mar tenebroso. Esta experiência origina uma profunda religiosidade e destaca sobretudo a devoção ao Divino, porque equivale ao culto da solidariedade, que melhor se adequa às convicções e carências históricas das populações dos Açores. Além disso, o afastamento em relação ao Portugal continental dificulta a superintendência da hierarquia eclesiástica, que intenta a redução da participação popular na organização dos festejos, sob o pretexto da depuração de manifestações profanas e inclusivamente pagãs. Neste contexto, a adoração açoriana ao Espírito Santo adquire a caracter de uma religião do povo, que também facilita a difusão e a perpetuidade. Na realidade, no decurso da história, o sagrado e o profano coexistem nos ritos da veneração ao Divino, movendo a reacção do clero, tendente á proibição das extravagâncias de diversas demonstrações cultuais, que sobrelevam a comemoração da alegria sobre a piedade e o recolhimento próprios dos actos religiosos. Ainda hoje, a Igreja previne o excesso de certos festins, que secundarizam os propósitos de renovação espiritual das comunidades cristas. A comprová-lo, mesmo no caso das Lajes, atentemos na edição do Semeador de 21 de Maio de 1983. Em primeira página, sob o título “Festa do Espírito Santo: renovar a igreja para transformar o Mundo”, lê-se: “Celebrar a festa do Espírito Santo “aqui” e “agora” está pois em não nos ficarmos nos impérios, nas coroações e promessas, nas sopas, nos vinhos e alcatras, mas sim em reconhecermos que somos cristãos e vivemos numa comunidade cristã para renovar no Evangelho, as nossas vidas, as nossas famílias, os nossos ambientes de trabalho, de divertimento, de estudo!”.

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Nos Açores, as festas do Espírito Santo variam consoante as ilhas e as localidades. No entanto, apesar de diferentemente celebradas em cada lugar, acham-se com uniformidade disseminadas por todos os recantos, constituindo o melhor símbolo da alma açoriana, pela capacidade de conciliação da diversidade real com a unidade ideal. Todavia, sempre avulta o enraizamento e a magnificência dos festejos da Terceira. Na explicação deste fenómeno, Carlos Enes invoca a resistência ao domínio filipino dos séculos XVI e XVII, quando a igreja e a Coroa proíbem as práticas menos ortodoxas, movendo estão a repulsa dos povos, que promove a defesa da tradição. Porém, ainda no caso terceirense, ressalta o esplendor das festividades do Ramo Grande. Neste caso, a peculiaridade resulta decerto da antiga fertilidade, que gera as maiores reservas de pão, carne e vinho, justamente os ingredientes fundamentais do cumprimento das promessas. Assim, as Lajes localizam-se no maior centro da celebração do culto do Espírito Santo na Terceira e nos Açores. Aliás, a veneração do Divino, que sucede sobretudo em torno da igreja paroquial, ocorre também na comunidade da Serra de Santiago, uma prova da difusão e da diferenciação dos ritos no meio da própria freguesia. Por isso, no dia de Pentecostes, de 1990, uma missão estética em digressão pelo arquipélago, no intento da interpretação das expressões etno-religiosas dos festejos mais típicos, escolhe as Lajes para palco de observação. Nesta delegação participa, por exemplo, o pintor Júlio Pomar, que depois exprime em tela a leitura das manifestações insulares em honra do Espírito Santo.

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Nas Lajes, à semelhança da prática mais comum da ilha Terceira, as festividades do Espírito Santo decorrem da Pascoela à Trindade. No essencial, constam da realização de 8 funções, promovidas em cada domingo pelos respectivos imperadores, e de 2 bodos, organizados nos dias de Pentecostes e da Trindade pelos correspondentes mordomos. A selecção de imperadores e mordomos respeita um procedimento muito antigo, consistindo no sorteiro de pelouros entre candidatos, que geralmente agem no cumprimento de promessas. Em referência ao ano imediatamente seguinte, a extracção das sortes ocorre em acto público, durante a realização do primeiro bodo, no domingo de Pentecostes, de acordo com a ordem de precedência das inscrições feitas perante a Comissão do Império.

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A função comporta dois momentos mais relevantes: a bezerrada e a coroação. À sexta-feira, a bezerrada consiste no desfile do gado de abate destinado ao gasto da festa, gratuitamente engordado ao longo de meses pelos denominados criadores. Ao domingo, a coroação comporta um cortejo entre a casa do imperador e a igreja, dominado pela parada de coroas, bandeiras e demais insígnias, cujo transporte se incumbe a criadores, familiares e amigos. Na igreja, em acto de missa, acontece a cerimónia de maior significado, a coroação propriamente dita, quando o padre procede à imposição das coroas, por norma em crianças aparentadas com o imperador. Depois, ao fim da tarde, sucede a “mudança da coroa”, que consta da transferência, ainda em desfilada, de todo o aparato do culto para a morada do novo imperador. A função reúne os convidados, que são obsequiados com refeições tradicionais e repartição de carne, mas também contempla o auxílio dos pobres, através da distribuição de esmolas. Com efeito, no dia da bezerrada, os comensais desfrutam de um jantar ligeiro composto de pão de leite e vinho e, no dia da coroação, dispõem de um almoço farto constituído pelas conhecidas sopas do Espírito Santo, cozido e alcatra, ainda com acompanhamento de pão de leite e vinho. Além disso, na véspera da coroação, o imperador reparte pelos convivas presentes de carne, mais generosos para criadores e ajudantes. Os necessitados beneficiam de dois tipos de oferendas, concedidas no dia da coroação antes do almoço: as “esmolas da mesa” e o “pão dos inocentes”. As “esmolas da mesa”, em número previamente determinado, atribuem-se a pobres seleccionados e alguns ajudantes, que levantam uma tigela de sopas e um pão de leite contra a entrega de um bilhete. O “pão dos inocentes” consta da distribuição generalizada de merendeiras de pão de trigo, sobretudo solicitadas por crianças, velhos e mulheres. No cumprimento de uma promessa individual, os encargos da função pertencem exclusivamente ao imperador, que apenas recebe algum auxílio voluntário dos particulares, mais sensíveis às carências dos imperadores menos abonados.

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O bodo constitui um ajuntamento dominical da comunidade, que usualmente se aglomera no largo da Igreja, muitas vezes acomodada em carros de bois cobertos de toldos brancos. Na essência consiste na partilha de pão e vinho por paroquianos e forasteiros. Porém, a mordomia ainda comporta outras acções, mormente quando ocorre a denominada mudança da vara: no sábado, de casa do mordomo para a despensa do Império; na segunda-feira, da despensa do Império para a morada do novo mordomo. No sábado, o mordomo obsequeia os convidados com um almoço tradicional, em tudo semelhante ao referido na descrição das funções. Na segunda-feira, o mordomo procede novamente à distribuição de pão e vinho pelos lares da freguesia, em quantidades proporcionais ao contributo das famílias. Aliás, embora decorrente de uma promessa individual à imagem da função, a previsão de maiores gastos da mordomia obriga à realização de um peditório público, que geralmente sucede no termo do ano velho ou no começo do ano novo. No conjunto, a mordomia implica a repartição de um considerável volume de comestíveis, de extrema relevância para os padrões de pobreza das sociedades de outrora, que convertem o bodo em dia de festa por excelência. A comprová-lo, em 1968, Joaquim Fernandes Homem, então mordomo do primeiro bodo, efectua a partição de 3407 pães e 7 pipas de vinho, como regista o Semeador, na edição de 8 de Junho.

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A partilha de alimentos constitui decerto a principal característica da festa do Espírito Santo, porque equivale à melhor forma de exteriorização do culto da solidariedade. Nestas circunstâncias, os responsáveis pela manipulação das carnes e das farinhas, respectivamente os marchantes e as mestras, adquirem muito relevo na organização de quase todas as actividades. Todavia, os festejos ainda incluem manifestações sagradas e profanas diversas do cerimonial básico já referido na caracterização sumária das funções e mordomias. Na dimensão religiosa, sobressai a reza diária do terço, promovida por imperadores e mordomos perante o altar Divino, na companhia de familiares, vizinhos e curiosos. Na variante profana, os ajuntamentos e os bailes reúnem os mais novos, que convertem sempre a quadra do Espírito Santo em que era de diversão. Neste particular, identificamos até agentes de divertimento, que variam consoante a sucessão do tempo. No passado, avulta a acção dos foliões, uma espécie de mestres-de-cerimónias, que envergam roupas coloridas, enquanto tocam e cantam em louvor do Divino. No presente, releva inequivocamente o papel das filarmónicas, embora os modernos equipamentos de áudio já pontifiquem na animação de muitos serões. Além disso, na sequência de uma prática muito antiga, os próprios imperadores e mordomos organizam também programas festivos, nomeadamente em dias de bezerrada ou em sábados de bodo. As mais das vezes, correspondem à actuação de grupos de modas tradicionais ou então à promoção de cantorias, protagonizadas pelos melhores improvisadores populares, alguns dos quais lajenses, por exemplo, José Coelho Borges (O José Coelho), Serafim de Sousa Borges (O Serafim das Pedreiras), José Cardoso Pires (O Cardoso Pato), José Caetano Lopes (O José Lourenço), Francisco Andrade (O Andrade) e Ricardo Martins.

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Nos nossos dias, apesar da pujança de muitas manifestações açorianas do culto ao Divino, a sucessão das transformações socioeconómicas e a evolução das mentalidades sempre abalam o ímpeto das festividades, cuja perseverança demanda a adaptação aos sinais do tempo. Entre os factores de enfraquecimento da devoção, registamos o progresso da alfabetização, a contratação do sector primário e o predomínio do individualismo. A alfabetização acarreta necessariamente práticas de aculturação, que implicam a regressão de todas as tradições. O decréscimo de activos na agro-pecuária reduz o apego dos homens à terra, donde brota o pão, vinho e a carne, que constituem sempre os principais ingredientes da festa. A prevalência do individualismo, mesmo depois da experimentação de muitas propostas colectivistas, transfere da Sociedade para o Estado o dever da assistência, antes suprido pelos particulares, nomeadamente pelas irmandades do Espírito Santo. Nas Lajes, vislumbramos muito naturalmente os efeitos de todas estas alterações. Assim, perante a redução das promessas, a simplificação de rituais e a eliminação de encargos representam garantias de preservação dos festejos. Com efeito, muitos imperadores suprimem a bezerrada e alguns até abdicam do almoço do dia da coroação. Todavia, escasseiam principalmente candidatos a mordomos. Aliás, o boletim paroquial assinala semelhante fenómeno desde pelo menos 1974, quando Manuel de Sousa Cardoso (Sevadal) assume a organização da mordomia do domingo da Trindade, após a reunião no Império. Nestas circunstâncias, adoptam-se soluções de recurso, que quase transformam a promoção das festividades em dever social. A comprová-lo, refira-se a constituição de comissões de paroquianos, que asseguram a realização dos bodos por vários anos. É o que acontece presentemente, na sequência de um entendimento de 1993, que possibilita uma fase de regularidade até 2002. Contudo, sempre decaem o decoro e a animação dos bodos, comparativamente aos costumes de outrora. A diminuição e o desaparecimento dos carros de toldo, perceptíveis desde os anos setenta, indicam um claro declínio das celebrações. É certo que em 1984, por ocasião da reabertura da igreja, após o processo de reconstrução motivado pelo sismo de 1980, a reaparição dos antigos carros de toldo suscita o regozijo do pároco. Porém, o velho uso não logra um ressurgimento duradouro. Por isso, em Março de 1990, por intercessão de um paroquiano anónimo, o cónego José Garcia lança um apelo nas páginas do Semeador, tendente á reabilitação do hábito da ornamentação dos carros. Apesar destes indícios de menor vitalidade, subsiste entretanto a convicção da perpetuidade das festas em honra do Divino Espírito Santo, porque o enraizamento de meio milénio, da extensão da própria história dos Açores, traduz-se no melhor expediente de renovação.

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